quarta-feira, março 15, 2006

TORRE

Quando eu puder, quero ter uma casa com um nome, assim como a casa de minha avó, que era conhecida por Torre. Hoje, seu nome passou a designar um bairro inteiro.

É um bonito e forte nome: TORRE.

Quando minha avó morreu, eu ainda era uma meninota adolescente. Foi na primeira fase, se não me engano. Talvez tivesse uns quatorze anos, por aí. Lembro que ela passava muito mal, a pobrezinha. Não reconhecia netos, filhos, noras. Minha mãe, segundo sua versão, a cuidou mais do que todos os da família. Morreu de câncer no pâncreas. No hospital. Fiquei com a lembrança dela, ainda relativamente lúcida, na varanda de sua casa, onde costumava cortar-lhe as unhas. Lembro-me dela sentada, naquele chão frio de cimento, depois do almoço, iluminada pela luz única e singular da caatinga cearense. Compondo o cenário em minha memória, vejo, no alpendre, meu avô se balançar numa rede de tucum, mastigando fumo de rolo e dormindo agarrado a seu cajado, o meio eficiente que encontrara para afugentar netos zoadentos. Vez por outra, se o sono era leve, punha-se a trançar a palha da carnaúba. Fazia esteiras, chapéus, açoites, o que lhe viesse à mente. Era habilidoso. Essa arte fosse talvez a sua literatura. Ali, ao lado da habilidade manual, passava sua vida em revista. Relembrava histórias, maldizia as trapaças, projetava seu futuro. Minha avó, apesar da idade, ainda era encabulada. Sempre que pedia, me contava suas histórias. Eu lhe perguntava o mesmo: como tinha sido o encontro deles dois. Inocente, imaginava que se tratava de um amor profundo. Não podia ainda perceber que outras forças, muito mais imperiosas do que o amor, eram fundamentais para unir um casal.

Quando menina, gostei demais de ir a São Bento da Amontada. Lá, me esbaldava de tanto brincar. Hospedávamo-nos sempre na casa da vovó. Minha mãe, doente por limpeza, fazia uma faxina completa no nosso cômodo, armava ali umas redes e guardava ali nossas malas. Quando voltávamos, costumávamos vir carregados de comida sertaneja, e obviamente do meu doce predileto, o doce de leite feito por minha avó.

Por causa do doce de leite, resolvi escrever sobre ela, quase dezesseis anos depois de sua morte. Passei um bom período sem me dar conta de que não mais residia sobre a terra. Nas férias, tinha o ímpeto de convidar minha família para ir à Amontada, fazer-lhe uma visita. E nessas horas, percebia que a vovó já não existia e que as razões para ir àquela cidade escasseavam. Sonhei muito com ela, ainda viva, sempre viva.

No velório, na ante-sala de sua casa, quando a percebi deitada no caixão aberto, segurei-lhe as mãos e lhe disse para levantar-se. Quis informar-lhe que ali havia muita gente, e que ela devia se preparar para receber a todos, que não podia se comportar daquela maneira, deitada e dormindo diante dos convidados. Afinal, eles estavam em sua casa, precisavam ser recebidos pela dona. A bandeja de bombons passava e lembro-me de ter pego um pipper para mim. As pessoas bebiam refrigerante, e circulava muita gente, muita gente mesmo. Aprendi que uma cena de velório não era apenas uma reunião triste. É o momento em que as pessoas aproveitam para mostrar sua solidariedade e cordialidade.

Sua fama era a de receber todos que por ali passavam. Sua mesa estava sempre cheia de comida. Era um banquete diário. A família era enorme. Teve onze filhos, dos quais nove sobreviveram. Meu pai foi o caçula. Dos onze, uma mulher apenas. Uma família de homens, praticamente. Entre netos e bisnetos, podia-se contar uma centena. Imagino que em períodos de festa, a mulher não devia ter descanso. Todos em São Bento da Amontada, entrançando em sua casa tal qual a palha da carnaúba entrançava nas mãos de meu avô. Na cozinha, pendurados por ganchos, bichos recém mortos, carne fresca para alimentar a família-batalhão. Eram galinhas penduradas de cabeça para baixo, eram partes inteiras de carne seca de boi, eram chouriços enlaçados marcando aquelas paredes de vermelho, as gotas de sangue lembrando a cena de um açougue. A despensa, uma mini-casa interna ao lado do fogão à lenha, abrigava em várias latas os mantimentos, frutos da colheita daquele ano. Lá também, minha avó e minha mãe, em comum acordo, escondiam os biscoitos e os chocolates mais deliciosos.

Em seu quarto, possuía dois baús, o lugar onde guardava roupas de vestir, roupas de cama, alguns segredos, recordações caras, e um ou outro objeto de valor. Sempre me pareceu um mistério. O chão de seu quarto não era como o do alpendre, de cimento. Era feito de uma espécie de tijolo, mais do que vermelho escuro, cor de barro mesmo, de laterais arredondadas, gasto pelo tempo, como se fossem azulejos rústicos da idade da pedra. Dormia de rede numa parte do quarto e meu avô em outra rede, na parte oposta.

Sua cristaleira protegia meia dúzia de copos finamente decorados e algumas belas xícaras. Ansiava pelo dia em que poderia tomar café em uma delas. Na sala, sempre estava a TV em preto e branco e o rádio antigo em tom marrom.

O banheiro da casa da minha avó era fora da casa da minha avó. Duas portas, à saída da cozinha, davam cada uma acesso a funções semelhantes às do banheiro moderno. Por uma porta entrava-se para o banho, um tanque de cimento e barro, onde ficava água estancada e algumas rãs. Pela outra porta, um sanitário sem fossa e tampa, para uso de todos. Com a modernidade, minha mãe lutou muito para que os filhos construíssem dentro da casa um banheiro mais asseado para a família. Nós o usamos durante a nossa vida por lá. Este já possuía um chuveiro e uma pia, para uma eventual limpeza dos dentes.

Bem ao lado do alpendre, ficavam os estábulos, para onde as vacas, os bois e alguns cavalos iam se alimentar na primeira hora da manhã e no final da tarde. Um espetáculo.

Minha avó se chamava Euclídia de Barros Teixeira. Possuía uma irmã, de nome engraçado, Ovídia, de quem nunca esqueço a fisionomia. Foi a pessoa mais parecida comigo que já vi.

Lembrar-me de minha avó é lembrar-me da casa de minha avó.
Lembrar-me de um Torre feito de Barros.

7 comentários:

Anônimo disse...

"Todos em São Bento da Amontada, entrançando em sua casa tal qual a palha da carnaúba entrançava nas mãos de meu avô."


Texto muito bom! Muito bom! Tão cheio de sentimento, uma narrativa tão bem articulada, poesia.
Eu quase agradeço o fato de ter lido!

Anônimo disse...

Vc deveria escrever um livro sobre a sua avó...um texto muito bom, lembranças doces de uma infância que parece ter sido muito feliz.

Eu não tive coragem de tocar no meu pai no caixão, acredita?

É incrivel como esse toque de barros da torre, do piso, enfim, da casa, ainda é parte da sua estrutura.

Carol disse...

A impressão que tenho é que todas as casas de avós são iguais:
tem sempre o fogão de lenha, o banheiro único e a cristaleira decorada e decorando.
Fora a atmosfera.
E pra reforçar:
texto muito, muito bom.

Anônimo disse...

Também tenho muitas, e boas, lembranças da única avó que conheci, mesmo tendo convivido apenas 6 anos com ela.. Avó faz muita falta!
Aliás, parte da minha infância passei bem próximo da "casa" da sua avó, em todas as férias e feriados da minha infância ia para uma cidade bem próxima de Amontada, Itapipoca, cidade natal do meu pai. Conhece?
Bjo e Boa Semana..

Anônimo disse...

ah, elis, eu tô chorando. pela nossa infa^ncia, ainfòncia, infância - já tentei escrever umas três vezes, entre lágrimas.
que texto lindo.
como uma fotografia.
vejo você miúda, mamãe, vovô na rede, o vestido da vovó interminável com seus dois bolsos com casca de laranja dentro.
papai chegando, balançando a gente na rede bem forte.
obrigada pelas lembranças.

Elis disse...

Engraçado, Francimara, eu não posso me ver miúda. Para mim, eu era já quase um gigante. Talvez as cascas de laranja nos bolsos da vovó sejam sua marca indelével.

Fernanda, que interessante saber que você é de Itapipoca. Somos primas?

Guiomar, acho que deve ser muito difícil chegar perto de quem a gente mais amou no mundo, quando estão mortos.

Wanessa e Carol, obrigada pelos elogios.

Beijos.

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