terça-feira, fevereiro 27, 2007

Viver a chantagem da morte

Já é muito difícil, e sempre foi, para muitas das culturas que conhecemos, lidar com a idéia de que nosso corpo e nossa mente parará um dia. É quase um tabu falar da morte, o tema nos incomoda, nos causa repulsa, sua presença, mesmo apenas como um tema em nossas vidas, parece um mau presságio. Bizarro.

Onde moro, não tenho somente que conviver com a idéia da morte como condição humana inexorável, mas também como um acidente que nos pode atingir a qualquer momento, não importa o cuidado que cada um tome consigo mesmo.

Os seres humanos aqui se matam muito facilmente e não gostam de pensar que são descuidados com os demais e que não se organizam de modo a elevar a vida de outros seres humanos. O que se diz no Brasil é que nos acostumamos à idéia de pobreza, de desigualdade social e de violência. Contamos com a sorte e com meia dúzia de seguranças particulares contratados para manter a paz em certos lugares.

Pensar nisso é bastante desagradável e significa dizer que vivemos em guerra. Uma guerra silenciosa, não declarada, cujas explosões são tratadas como tragédias que não podem se repetir e que comovem por uma semana a opinião pública nacional.

O fato é que convivemos com o medo, sentimento que poderia, por que não?, ser pontual em nossas vidas. Não é. E no caso do Brasil, não há como deixar de ser. Não caminhamos meio quarteirão sem pensar que podemos ser assaltados, atropelados, atingidos inesperadamente por um ato insano qualquer.

Mesmo que o problema tenha uma dimensão tão grande, e que nos seja tão fundamental resolvê-lo para que possamos viver a única vida que temos para viver, não há movimento nenhum - de e para parte alguma - que pretenda perceber o problema com vontade real de solucioná-lo. Todas as propostas, todas, sem exceção, são impraticáveis, absurdas, incoerentes, inoperantes, simples instrumentos produzidos por um pensamento manco, que não vão, repito, não vão, repito, não vão jamais sequer amenizar a desgraça que significa viver em uma cidade brasileira.

É preciso repensar tudo, todo o orçamento do país, todas as práticas de sociabilidade, todas as práticas de punição, todas as organizações sociais, todas as divisões em municípios, estados e regiões, se quisermos cuidar do outro, se quisermos por um só tempo, que é o tempo de nossas vidas, pensar em quem está ao nosso lado, na fila da padaria, no engarrafamento, no ponto do ônibus, no teto de cima do nosso apartamento. É preciso fazer isso ou aceitar viver a cotidiana e deprimente chantagem da morte.

8 comentários:

Anônimo disse...

é fogo mesmo. ainda mais em pleno rio de janeiro.

Anônimo disse...

Você joga limpo com o leitor. Seu texto, muito mais que lindo, é de uma lucidez absoluta. Concordo plenamente, sinto o mesmo: medo e desesperança. Uma desgraçada.

Beijo,

Denise

Fátima Medina disse...

“O que se diz no Brasil é que nos acostumamos à idéia de pobreza, de desigualdade social e de violência.” Concordo com você, não nos acostumamos, apenas estamos tentando nos consolar para aceita aquilo que acreditamos não poder resolver. Concordo com você quando diz: “É preciso repensar tudo, todo o orçamento do país, todas as práticas de sociabilidade, todas as práticas de punição, todas as organizações sociais, todas as divisões em municípios, estados e regiões, se quisermos cuidar do outro, se quisermos por um só tempo, que é o tempo de nossas vidas, pensar em quem está ao nosso lado, na fila da padaria, no engarrafamento, no ponto do ônibus, no teto de cima do nosso apartamento.”
É necessário, urgentemente, necessário repensar as nossas responsabilidades.
Seu blog é uma abertura para a reflexão. Valeu, garota.
beijos

bernadete disse...

vou comentar depois, vou refletir mais. o que me incomoda mesmo é nos acostumarmos com a morte sem a aceitarmos como um lado da vida, entende?
Bernadete

bernadete disse...

vou comentar depois, vou refletir mais. o que me incomoda mesmo é nos acostumarmos com a morte sem a aceitarmos como um lado da vida, entende?
Bernadete

coisas do eu disse...

querida amiga, Elis

nada tão difícil quanto encararmos a tua constatação, por causa de nosso cinismo...

mas, para além disso, quero pensar, sem ufanismos ou idealismos recheados de ideologias que nos empurram cada vez mais para esse abismo, de não termos infra-estruturas básicas para nós, cidadãos e cadadãs, brasileiro/as,

que a perspectiva da vida (em sentido amplo, restrito, trivial, universal), a vida cotidiana, gestada, educada, violentada, roubada, chantageada,
vida frágil, louca, contraditória,
simplesmente,

a vida

pudesse nos dar coragem
de "morrer" (não messianicamente) por ela, melhor, de "vivê-la".

não acredito em nossas escolas, em nossos "lares", em nossas igrejas, em nossas "instituições"!!!

quero ter um desejo simplies e vital de lutar por mudanças,
quero ter amigas e amigos que lutem comigo!


grande grande abraço

P.S.:preferiria comentar teu texto, com o silêncio.

Sir disse...

às vezes acho que me acostumei com essa sub-vida. nem sempre jogam a realidade assim na nossa cara, mas é preciso.

beijos.

Anônimo disse...

eu vivi um "escape" desse problema tem duas semanas, sei bem do que estamos rodeados.

ou melhor, estamos confinado numa cidade que agora só nos assuta.